terça-feira, 29 de novembro de 2011

A história de uma mulher criança que escrevia poemas com o olhar


Apareceu vinda dos sonhos.

Cruzou-se comigo um dia por acaso naquela terra do nunca onde as paixões acontecem na troca de um olhar onde vivem milhares de fantasias que se abraçam como se fossem duas folhas de um só poema a fazer amor.

Assim apareceu Pipa.

- Deixem que me apresente. O meu nome é Pipa mas não gosto que me chames Pipa. Talvez gostasse de ser chamada de Pipinha, mas apenas por ti, porque Pipinha é demasiado piegas. Eu não sou piegas. Quer dizer, às vezes até sou, mas só gosto de coisas piegas quando toca a assuntos do meu coração e como tal só quem vive dentro dele pode partilhar fantasias de uma criança mulher.

Pipa tem os olhos verdes a pele branca e macia, habita no vale sedoso de uns lençois de magia, onde mistura o amor de mulher com as fantasias e as brincadeiras de criança. Vibra com a primeira música que conheceu quando saiu do seu canto. O paraíso do olhar que resplandece aquele brilho apelativo dos abraços fortes e sentidos, que não se podem descrever nem muito menos escrever.

Passeia-se com as mãos nas ancas e sorri envergonhada quando lhe peço um sorrisinho.

Pipa, essa menina que um dia, por acaso, cruzou-se comigo naquela terra do nunca onde as paixões acontecem na troca de um olhar onde vivem milhares de fantasias que se abraçam como se fossem duas folhas de um só poema a fazer amor. A escritora de poemas simples vasculhados na sua musicalidade. A menina dos poemas curtos, expoentes de pequenos mimos e ambições.

- Vamos achar uma coisa?

- Vamos achar uma coisa como?

- Achar uma coisa no chão. Há muito tempo que não acho uma coisa no chão. Fico feliz quando acho uma coisa no chão.

Também, tal qual Pipa, também eu me sinto feliz com essas pequenas surpresas. Os pequenos grandes momentos felizes, parece que estamos a chegar longe em passos pequenos.

Pipa foi embora. Desapareceu como aparecera. Deixei de a ouvir dizer; "fala comigo... tenho fome" - com voz terna e melodiosa, sempre a dois passinhos do sono.

Uma destas manhãs, de novo a sós com as ruas frias da cidade, encontrei uma coisa no chão. Era um cronometro.

Um sinal, talvez, pensaria Pipa.

O sinal de que agora tudo corria contra o tempo. Que passa amarguradamente devagar mas quando abrirmos os olhos, ficará apenas a recordação dos instantes felizes e especialmente...

daquele dia que por acaso, naquela terra do nunca, onde as paixões acontecem na troca de um olhar onde vivem milhares de fantasias que se abraçam como se fossem duas folhas de um só poema a fazer amor.

Pipa foi embora e não voltou.

Mas todas as noites chega o seu sorriso que a pedido me leva a voar de mãos dadas pela noite.

As mãos soltaram-se e Pipa foi-se embora. Regressa todas as horas do meu dia, entre sorrisos marcados no meu pensamento e melodiosa parece querer-me dizer que tudo foi apenas um sonho e todos os sonhos acabam um dia.

Desta vez, foi Pipa que escolheu voar.

por Nuno Teixeira



domingo, 27 de novembro de 2011

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Aqui & Aí



Jazz & Blues - Arco na Íris

Tango & Bossa New - Deliriu Αγνή

Valsa & Salsa Nós - Emboscada

Merengue & Minuetos - Cá dedos

Rock &Flamenco Rubro and Roll

Carne Etc & Tal

sábado, 12 de novembro de 2011

O fim deste nosso outono



Nos quatro pontos cardeais os vigias defendem o

sono cansado da tribo ou rebanho de gente que

vagueia pelos campos



Um homem ao norte uma mulher ao sul outro

homem a oriente e a ocidente a segunda mulher



Estão sentados de pernas cruzadas atentos a

todas as sombras e gritam quando há perigo



Mas porque os perseguidores não gostam de

atacar na escuridão a noite decorre muitas vezes

calma apenas fria



Ao amanhecer a tribo acorda e divide-se em

quatro grupos conforme os pontos cardeais e vai

agradecer aos vigias a vida conservada



Depois o homem do norte e a mulher do sul o

homem do oriente e a mulher do ocidente juntam os

sexos porque assim foi decidido que deveria

acontecer todas as manhãs



Enquanto a união dura cantam em redor a única

canção feliz que não esqueceram



O sol levanta-se sobre os quatro corpos nus que

são a esperança inconsciente da tribo



Entretanto acende-se a primeira fogueira e o

fumo azul da lenha sobe para o céu



(José Saramago. O Ano de 1993. 1975)

...reticências são gotas de mar alto onde se afogam palavras...



(L.Reis)

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Carne - Viva


Adicionar legenda

 
 
 
 
Dizer do corpo
o corpo da poesia
...

Pensar do corpo
o corpo da poesia
...

Escrever do corpo
o corpo da poesia
...
 

(O Corpo, Dois Corpos - Maria Teresa Horta)

Touch me

A flor do espinho

Nas paredes frias do cinza azulejado
Ranhuras aradas pelas patas brutais do homem
Sulcos verticais, veias transparentes
Pendurados no teto os ilustres vagalumes
Asas de um colibri selvagem
Casulos feito um móbile
Entra o vento, nasce em flor.
Ah bruta flor!















sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Dos Cruces

Sentada numa cadeira que não balança
Minhas mãos tecem cruzes


Que formam a mesma flor
repetidas vezes, flores e cruzes

O olhar cansado e obstinado
Em busca do tom e das lembranças

Minha velhice descoberta
Antes mesmo que eu use as lentes

Engrandecendo as minúsculas cruzes
O cravo do esquecimento no meu colo

Embalo as flores e as cruzes
Na cantiga antiga da mulher de agora

A linha na vida
A vida na flor
A flor em cruz.






segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Fragmentos



Eu sei, de vez em quando vem as guerras porque não somos somente paz. Mas escute, amor: a guerra é lá fora, contra quem quiser pisar na sua cabeça. Não, eu não quero. Eu sou fraca, o amor é fraco, o amor já se entregou. E se isso não tiver graça, eis a hora de partir, pois não é amor o que você procura. Eu só posso lhe oferecer a experiência assustadora e aterrorizante de ser amado.


E se existe alguma guerra é essa: meus dedos em sua pele, delicadamente, arrancando da superfície o que nem você gostaria de ver em si mesmo. Pois está vendo esses dedos? São eles que fazem carinho quando o mundo nos dá vontade de encolher num canto do sofá e dormir chorando... O Outro não pode amar aquilo que Eu não legitimo, não pode! Essa é a guerra! O risco de descobrir-se sem vestes, fraco, humano como qualquer outro, e ainda assim amado. É tão exposto quanto nascer, e não saber como será o mundo; assim como, nu e frágil, não saber o peso daqueles olhos em você

Hoje eu quis inventar uma outra palavra, não pena. Que em pena a perspectiva é vertical. Em pena, sou eu olhando para baixo, e eu uma outra que traduzisse assim: eu olhando para dentro. Então eu assisto àquilo, olhando um cadáver ainda morno e digo sim, sim, ele tinha dentes muito bonitos, sim. Mas não fui eu que inventei a morte, não fui, a culpa não é minha. Eles dizem: alimente-se bem, beba pouco, não fume. Não fui eu que inventei isso de a morte entrar pela boca. É uma lei natural. Tudo o que é só corpo, pele ou matéria está se desgastando: o guarda-roupa, a Brigitte Bardot, tudo.


Então, o que se salva senão o intangível, senão os gestos que construímos em silêncio, de olhos fechados? E de olhos fechados, sonhei que você voltava dessa guerra e entrava embaixo de minhas cobertas: era o lugar mais quente depois que nada disso importava mais. Eu te abraçava bem forte, sem nada perguntar, porque o modo como você aquecia os meus pés friorentos era mais bonito do que tudo, tudo.


Escrito por Rita Apoena

















quinta-feira, 18 de agosto de 2011


Meus versos nascem da saliva que brota docemente de minha língua

e morrem feito compotas nas prateleiras do meu pensamento.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Luz



Vamos começar a limpar isso aqui...


Uma vassoura de palha macia acariciando o chão de terra batida dos meus quintais.

Folhas displicentemente depositadas nos riachos cantantes da minha mente,
navegando calmamente pelos veios dos meus pensamentos.

O cabelo do sol delicadamente iluminando os contornos e revelando a forma de tudo.

A expressão do vento balançando a saia, flores e pólens.

Pássaros carregando as sementes nos olhos vidrados da esperança.

Estrelas de mãos dadas formando anéis indissolúveis na lua.

Sono sereno, paz anunciada.

O que não presta, não cria raiz em mim.









sexta-feira, 27 de maio de 2011


Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

(Eduardo Alves da Costa) 




terça-feira, 24 de maio de 2011

Fica.



Pergunto-me se alguém ainda vem aqui. 

Alguém vem, eu sei.
Preciso acreditar que é voce.
Fica. Não vá. 
Ainda escuto seus passos arrastados. 
Ouço os cães uivando.
As flores aparecem em vasos e canteiros.
O café exala o mesmo aroma.
A música insiste em tocar.
O corpo implora, fica...
Mesmo que seja pra olhar.
Sente. Sinto. O coração sobreviveu.
O sonho deita pra descansar.
Toca... os cabelos querem deitar.
O choro brota, nascente que não quer secar.
O vazio sussurra, fica...
Me deixa ficar.
Deixo, e o amor grita:
não vá...

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Das Trilhas.




- Dorme, só existe o sonho.
Dorme, meu filho.
Que seja doce.
 Não, isso também não é verdade.



- Caio F. Abreu in “Os Dragões não Conhecem o paraíso”.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Ave Maria de Maio.



Acordou sobressaltada durante aquela noite. Sentiu necessidade de verificar no escuro os vãos e desvãos do quarto e demais cômodos da casa. Não trazia junto o medo de supostamente se deparar diante de algo ou alguém estranho ao ambiente.

Maria, retalhava olhares diante de persianas imaginárias. Alcançava estrelas e cometas pelo lastro do pensamento; um ser noturno que conjugava a escuridão ao cerrar os olhos e implorar pelo descanso do sono. Aguçava os sentidos ao tatear a geometria dos objetos que desenhavam seus limites. Debruçava-se nas janelas e mirava os postes estéreis de luz. Havia sempre uma a brincar naquele olhar perdido no horizonte em perspectiva angular.

Mantinha em segredo o desejo de rezar diante daquele mundo alcançável. Sabia, que naquele quadrado, continha um grão de sua real grandeza e perplexidade. Usava o olhar para ascender aos céus. Diante do silêncio, proferiu uma prece na restinga do quarto. Perguntava-se do ajoelhar... Prostrou-se diante do chão e reverenciou o azul-lençol feito mar no revestimento do seu leito. Tinha dificuldades em fechar os olhos e os ouvidos para o azul-janela. Decidiu enrondilhar-se na cama e se aquecer com o próprio calor do corpo. Segurava os joelhos e alma. Tinha pena de ambos. Ligada ao cordão universal , acendia estrelas e móbiles não identificados no opaco do teto de seu mundo. Fechou os olhos, aceitando a exaustão como dádiva.

Acorda para uma manhã luminosa e quebrantável. Ainda descalça, percorre o desenho das vias de acesso ao espelho que depositou a imagem de quem pode escorrer água pelo rosto sem o tempero do sal. Seu fraco era o doce. Seu café era forte...Maio chegara com ventos sorrateiros e devastadores. Durante a noite, os sopros são escuros e inaudíveis  feito  o silêncio do mundo de Maria.


Enquanto a água mansa não borbulhava, decidiu visitar o vaso de flor de maio. Mirou a janela e só conseguiu identificar alguns objetos, casas, rua e árvores dançantes que estavam desde sempre. Vagou o olhar por toda a extensão da janela à procura do cachepô e pêndulos de promessas verdes. Desceu o olhar com tamanha rapidez e avistou os pés nus. Aos poucos foi caminhando até a janela e seguiu o rastro de terra dispersa no chão e cacos da louça espalhados. Sem esforço nenhum, ajoelhou-se com a serenidade dos que penam, dos que lamentam. Juntou o que restou do sonho de flor e plantou maio na alma com as mãos açucaradas pelos grãos de terra.


Ave Maria que não soube da flor,  saberá de maio.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Das respostas.




Algumas frases tem o poder da folha em branco.

Se alguma delas acertar você abandone todas as suas respostas:

é inútil escrever de branco sobre folhas brancas.

Minha caneta transparente estourando frases dentro da bolsa:

foi um grande silêncio.

(Rita Apoena)

segunda-feira, 4 de abril de 2011


...



"Is there a time for keeping your distance
A time to turn your eyes away
Is there a time for keeping your head down
For getting ..."


(pause)

domingo, 3 de abril de 2011

Mais da mesma.


Construo o rosto feito um mosaico.
Fragmentos e peças encaixados
 nos vincos e expressões.
Adapto orelhas, moldo dentes.
Desenho o possível. 
Salivo o indelével.
Na demora da imagem, 
permanece o que falta.
Registro o inexplicável 
no canto dos olhos.
Ainda me reconheço
 nos traços que não revelei.
Meu desenho é talhado no invisível.
Pra quem quiser sentir feito o vento
e se molhar na tempestade.

sábado, 2 de abril de 2011

Orquídea Negra


Atenção artilheiro...

Três salvas de tiros de canhão
Em honra aos mortos da Ilha da Ilusão
Durante a última revolução do coração e da paixão
Apontar a estibordo… Fogo!
Você é a orquídea negra
Que brotou da máquina selvagem
E o anjo do impossível
Plantou como nova paisagem
Você é a dor do dia a dia
Você é a dor da noite à noite
Você é a flor da agonia
A chibata, o chicote e o açoite
Lá fora ecoa a ventania
E os ventos arrastam vendavais
Do que foi, do que seria
Do que nunca volta jamais
Parece até a própria tragédia grega
Da mais profunda melancolia
Parece a bandeira negra
Da loucura e da pirataria
Atenção, artilheiro
Três salvas de tiros de canhão
Em honra aos mortos da Ilha da Ilusão
Durante a última revolução do coração e da paixão
Apontar a estibordo… Fogo!





...

sábado, 26 de março de 2011

Da boca, vogal.


Quando não tiver mais nada – nem chão, nem escada, escudo ou espada – o seu coração acordará.


Quando estiver com tudo: lã, cetim, veludo, espada e escudo... Sua consciência adormecerá.
E acordará no mesmo lugar, do ar até o arterial; no mesmo lar, no mesmo quintal, da alma ao corpo material.


Quando não se tem mais nada, não se perde nada. Escudo ou espada: pode ser o que se for, livre do temor.


Quando se acabou com tudo – espada e escudo, forma e conteúdo – já então agora dá para dar amor. Amor dará, e receberá do ar, pulmão; da lágrima, sal. Amor dará, e receberá, da luz, visão do templo espiral.


Quando se acabou com tudo (espada e escudo, forma e conteúdo), já então agora dá para dar amor. Amor dará, e receberá do braço, mão; da boca, vogal. Amor dará, e receberá da morte o seu guia natal.


(Adeus, dor...)


[NANDO REIS]

sábado, 19 de março de 2011

O mundo morre.


O mundo morre, quando acordamos e lamentamos por isso.
O mundo morre, quando na beirada da cama existem muitos sapatos e um chão de mentira.
O mundo morre, quando nos abandonamos e carregamos na bolsa a maquiagem diária.
O mundo morre, quando as crianças são jogadas na lata de lixo junto aos dejetos.
O mundo morre, quando presenciamos a brutalidade e fingimos que "não é comigo".
O mundo morre, quando nossos filhos aprendem a morte do mundo.
O mundo morre, quando as mãos hesitam em tirar o cabelo do rosto dela.
O mundo morre, onde pessoas escutam Meditação e continuam bebendo e gargalhando a sua desgraça.
O mundo morre, quando vestimos a desfaçatez e penduramos no cabide o que somos em carne viva.
O mundo morre, quando abrimos um livro e não encontramos a mancha da flor seca na página preferida.
O mundo morre, quando fechamos os olhos sem qualquer coisa terna para lembrar.
O mundo morre, quando sonhamos com o pesadelo que é a vida.
Incessantemente o mundo morre.

terça-feira, 15 de março de 2011

Entre Abraços.

[]Quando escrevo, repito o que já vivi antes. 
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. 
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo 
vivendo no rio São Francisco. 
Gostaria de ser um crocodilo porque amo grandes rios, 
pois são profundos como a alma de um homem. 
Na superfície são muitos vivazes e claros, 
mas nas profundezas são tranquilos e escuros 
como o sofrimento dos homens.[]

João Guimarães Rosa



[]As procelárias

De minha velha torre eu acompanho cada ano as aves que fogem dos climas atrozes

Lentas aves cuja multidão de asas batendo deixa a tempestade boiar sobre os verdes oceanos dos trópicos
E cujos corpos negros ocultam dias e dias o sol e à noite aprofundam a treva no frêmito profundo da sua passagem.
Da minha velha torre com que eu já me confundi ao Tempo e de quem sou a longínqua luz que os timoneiros vêem palpitando
E cujas escadas suspensas subi muita vez pensando atingir o céu descoberto em cima
Da minha velha torre onde já vi o vácuo dos tufões e das calmarias repousarem na sua sucessão eterna
Eu sigo cada inverno essas estranhas peregrinas fartas em cujas garras pendentes parecem se suspender catástrofes
Eu, a quem foi dada a suprema liberdade da visão incessante dos horizontes nas auroras e nas tardes
A quem foi dada a significação suprema das correntes invisíveis e da inconstância dos ventos e a quem
Foi dada a palavra luminosa só ela capaz de dirigir o movimento dos portos do mundo
Eu durante eras nada compreendi dessas dolorosas fugitivas mas em cuja imutável rotina sentia a fatalidade de alguma missão a cumprir...
"Às vezes sonhava que elas eram escravas de Deus prisioneiras de um misterioso plano cujo movimento fizesse girar a terra
Outras, que eram anjos tombados, para quem não bastasse o inferno e cujo castigo fosse a eterna imagem proibida do céu no espelho das águas
E sobre que elas de quando em quando mergulhassem, não para se alimentarem de peixes, mas para conseguirem as nuvens e as estrelas
E outras, que eram almas vagabundas, irmandade pródiga dos campos santos, sequiosas de um espaço em renovamento, que sei mais...
Mas agora, talvez por tê-las visto tão de perto que cheguei a lhes sentir a rigidez da carne
Talvez porque ouvi um grito partir da sua massa escura e julguei reconhecer cheio de horror a própria voz que trago na vida
Eu sei quem elas são e por isso canto quando lhes sinto o palpitar das asas que me chega mais cedo porque a minha velha torre é alta e tudo sabe.
Da minha velha torre eu direi, nessa linguagem que aprendi no silêncio e na emoção das fontes da vida
Nessa linguagem que se foi dada a muito poucos é porque só deve ser escutada por pouquíssimos
Eu direi, com a tristeza de me saber o mais fraco e o mais desolado e de me sentir gritando fora de mim por esse mundo contra o que nada posso:
Elas são os Destinos dos homens – sempre que um homem clama há um homem que escuta
E é como se em todo o clamor houvesse um apelo de paz e em toda a escuta uma necessidade de amargura
Nessa ordem de almas caminhando das dilacerações para os grandes vazios íntimos
As procelárias são como as imagens dos Destinos trazendo e fugindo as tempestades mas trazendo e fugindo
E deixando em cada ser o que tirou de outros e arribando continuamente nos ciclos...

É por isso que eu acompanho cada ano as procelárias que voltam dos climas atrozes
Na esperança de que ouça um dia o mesmo grito que ouvi e em que julguei reconhecer minha fala
Para que eu possa mostrar ao meu miserável pássaro, satélite da minha passada descrença e impostura
A grande procelária branca que vive agora em mim e cujas asas enormes se estendem por todos os horizontes
E que olhando o céu noturno canta com voz de rouxinol baladas perdidas de comoção e de ternura
Os belos seios embebidos no mar que se alimenta deles e que cresce,
cresce, cresce, pelo meu sexo, pelo meu peito, pelos meus olhos…[]


Vinícius de Moraes




O Camafeu.



Fiquei me perguntado por dias o porquê de não escrever aqui algo que partisse de mim...

Eu que não escrevo. Defino meu "desaguamento" no olhar que deposito nas coisas, pessoas e sentimentos. Distorções ciprestres e prosaicas que escoam por entre palavras e pensamentos varados no peso disso. Um lenitivo-lisérgico-antitérmico para meus devaneios. Quanto mais me pergunto, mais vontade tenho de abraçar Guimarães, Caio's, Viniciu's, Clarice's e toda visão palpável aos meus olhos cegos de palavras. 

Gosto de boleros, Dolore's e Maysa's. Aprecio o bourbon na mesa e pontas de cigarros espalhadas pelo cinzeiro, sapatos de salto alto tombando a elegância das almas trôpegas e meias-fina desfiadas até a dobra dos joelhos com um pingo de esmalte incolor. Esses cuidados infames que denunciam o abandono a que estamos condenados.

Percorro vielas obscuras levantando o olhar num ângulo ascendente - as vezes vejo meus olhos virados do avesso para enxergar algo mais bonito. A minha recusa tem sido a única salvação e maldição. Vai que bate um vento? Desses que me envesgam e entortam os caminhos? O que farei com tanta lucidez? De tanto pensar meus olhos se tornaram dois delatores explícitos. Escondo minhas mãos no bolso, sigo os tortuosos caminhos me enganando que algo segue protegido. 

Meu destino cabe dentro do camafeu que carrego pregado no peito. Tem uma foto, um sorriso e algumas histórias. As vezes me dá coceira, e me lembro que preciso fazer cócegas e brincar de feliz. Quando vou dormir, aperto-o junto ao peito e deixo que ouça o que diz o coração. Quando fecho os olhos, respiro suave, até que adormeça junto a mim o que carrego e protejo com as mãos agarradas a ele, feito uma criança assustada no escuro das palavras que assombram sua inocência. De tanto suar nas mãos, o camafeu molha-se e sobrevive à sede do deserto dos dias.

Minhas pequenas e instantâneas palavras não podem salvar minha frustrada tentativa de olhar o que cabe em minhas mãos. 

quinta-feira, 10 de março de 2011

E numa batida mais forte da percussão, num rodopio, girando juntos, ele pediu:
 - Deixa eu cuidar de você.


 Ela disse:

- Deixo.




- Caio F. Abreu in “Os Dragões não Conhecem o paraíso”.

In


"Ela gostava tanto dessas palavras começadas por 
in – invisível, inviolável, incompreensível -,
que querem dizer o contrário do que deveriam. 
Ela própria era inteiro o oposto do que deveria ser.
A tal ponto que, quando a percebia intratável, 
para usar uma palavra que ela gostaria, 
suspeitava-a ao contrário: molhada de carinho. 
Pensava às vezes em tratá-la dessa forma, pelo avesso,
para que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. 
E, agora que se foi, é tarde demais para tentar requintadas harmonias."
CFA

terça-feira, 8 de março de 2011

O nascimento do Azul Turquesa.


- Porque não escolheste ser o Azul, porque?

 Perguntou o Azul , atordoado pela idéia da mortalidade do Verde.

Num gesto de ternura, o olhar Verde atingiu o Azul e respondeu:

- Porque eu, o Verde, sou o Azul que quis ser.

Ser-vivo.



A casa amarela.


Não espero de mim
nada além das flores
que prometi aos meus quintais.

Pela manhã, ao fechar a porta,
semeio ao vento o que exala
meu olhar.

Quando retorno, abro as porteiras
liberto pássaros, raízes e lembranças
que compõem e solidificam o alicerce deste lugar.

Na soleira de uma porta fechada,
acaricio um cão que ao meu lado costuma ficar
a aquecer meus pés.

Ao anoitecer, cubro os meus olhos 
com o manto da saudade
e divido com este cão
o calor do corpo que respira
nas floreiras da janela.

A vida adormece, feito o cão.
Os canteiros teimam em viver.
Acreditando na casa amarela,
abandono a grande mentira dos homens.