quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Apelo

Alegra-me a tempestade anunciada
Trombetas e raios iluminam o céu
Galopando em nuvens atômicas
Revestida de cinza-chumbo
Conduzida pelos ventos selvagens, desaba
Olhos atentos pra dentro
Aos primeiros tiros/pingos perfurantes
Peito aberto,  já não morro.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

[ silver endoidecido ]

Tem um clarão me chamando na janela...
Raios sedosos, pele e maciez
Pêlos eriçados, saliências aguçadas
Notívaga olho, condenada obedeço
O prata  me suga
O cobre me encorpa
A força telúrica me encandesce
Cintilantes formigar, nave adrenalina
Quebro vidraças, corto veias
Jorro pura luz...E brilho no céu.
D'A lua
                                                                        
[ silver desfalecido ]

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Eu quero ser Karen Carpenter.


Eu me lembro daqueles dias em que as agulhas das vitrolas criavam tufos de poeira-algodão-doce na superfície do céu negro no vinil dos "The Carpenters". Era uma garagem, mas não tínhamos carro. Meu pai eventualmente aparecia trazendo um carro e um disco para dar sentido aquele espaço e preencher sua longa ausência. Meu irmão, reunia seus amigos e retirava a vitrola empoeirada de cima do armário pra compartilhar as novidades sonoras. Eu, enquanto irmã caçula, ficava de fora. A partir de uma determinada reunião, intitulada por ele de “Hi-Fi”, comecei a me atentar ao que existia por detrás da porta de acesso. A voz ressoava na minha cabeça, dando forma a uma mulher linda, suave e exuberante. Inquieta, meus olhos viam por frestas minúsculas. Qualquer vão era bem-vindo a ponto de esticar o olhar mais elástico e vislumbrar o filete negro e melódico do ambiente. Sorrateiramente, numa certa noite, minhas mãos resolveram girar a maçaneta da porta e definitivamente  fazer parte daquilo. Para minha surpresa, ninguém percebeu minha presença. Pé ante pé, fui até a velha mesa de verniz escasso, coberta com uma toalha florida de um fundo branco. Agradeci por um momento aquele clarão, fora ele que me indicou para onde eu deveria ir sem tropeçar pelas quinquilharias de depósito/garagem que aquele ambiente se transformara. Hipnoticamente, avistei a vitrola verde/sei-lá-o-que, e nela, uma espiral negra e brilhante entoando A VOZ . Parei diante daquela cena, e por um momento, consegui ver um ciclone negro perfurar a vitrola e quebrar todo o piso. Deslocando o olhar levemente, me deparei com a capa do disco. Eram dois. ELA, a única. Estampado à capa, uma imagem antagônica e agonizante; Karen me pareceu feia, apagada e com um sorriso macabro. Seus dentes me lembravam os de um serrote. Seu olhar parecia brotar de duas covas profundas e sombrias. (continuei concentrada na música). Embevecida, soltei quase um grito: - Eu sou a Karen, tudo bem? Os demais me dirigiram um olhar reprovador fulminante. Estranhamente, gostei. Meu irmão, imediatamente se dirigiu até mim, sugerindo que eu pegasse mais refrigerante e copos limpos e se retirasse depois disso. Voltei e fiquei. Nunca mais olhei pelas frestas.

Ao longo do tempo esse "gostar" se ectoplasmou à voz dela que criou morada na minha memória RAM. Não demorou muito e Karen sussurrava de dentro o som que eu gostaria de proferir aos ouvidos alheios. Ensaiava sua suposta feiúra no esforço de cantarolar "Close to you". Karen conseguiu desenhar o que eu havia visto naquela garagem; uma face cadavérica com uma foice atravessada na garganta. E sussurei novamente: "Eu sou a Karen, tudo bem”. Vê-la tão leve, me trouxe a imagem de um plainar no vinil de um azul desconcertante lá daquela garagem negra. Subitamente fui tomada por uma vontade de pegar o seu irmão todo-certinho-adequado e bagunçar seu cabelo todo-certinho-laqueado. Estarrecida diante da notícia, repetia: - Ela morreu, ela morreu. Seca, suave e mais feia que antes.

Karen sempre me pareceu bonita contrariando meus olhos tão enganosos e preconceituosos. Só não foi capaz de calar sua voz, que alimenta minha fome e meu admitir sem fim. Cogitei a hipótese de falar inglês, usar as roupas do mesmo gosto duvidoso, separar meus dentes e fazer pontas afiadas, de ter aquela morte anunciada estampada na testa e cultivar as dores de ter sido sempre preterida. A foice atravessada é a nossa única semelhança, sem falar na falta de fome para a prontidão do balcão dos restaurantes de cada esquina. Aquela sensação foi tomando forma de sonhos permeados de uma ternura sem fim. Descobri que Karen se tornara personagem em meus devaneios e nos de John, o Lennon. Amavam-se em mistério profundo. Deixaram cenas perenes nos meus pensamentos mais íntimos. Conseguiam formalizar toda aquela história no pedacinho mais lúdico de mim. Os olhos dela já não me pareciam duas covas e sim, duas floreiras borbotando música.

As luzes calaram. O vinho cessara. Karen não sabia que encolhida assim na solidão vazia, roubaria idéias e traria ninguém. Ficou sem o mar por onde aventurar e com um grande medo do afogar. Sem a verve do tanto amar, procurou no sabor da noite o fim de suas tempestades, desse mar inavegável chamado solidão dos sentimentos que achamos do ter nascido jogado ao vento, sem fazer sentido algum, mas que estranhamente nos dá todos os sentidos. Justo sentir. Sim, apenas ele, o sentir. Tão intocável, mas tão devassável, tão inocente e todo envolvente... Justo o sentir, fez Karen lembrar de cartas moídas que tinha triturado e que estavam silenciadas pelo tempo. Acendeu as luzes que haviam se calado, subiu degraus e tirou uma das cartas que John lhe escrevera do mundo dos indeléveis;


Um dia chegarei até tua noite
De mansinho, deitarei porta adentro
Na tua alma, vou renascer por inteiro
Boa noite, meu amor...
John.

Continuei percorrendo as avenidas por aí com um sentimento tenro e angelical. Ouvia e olhava A VOZ com um sentir cada vez mais profundo. Aumentava o som quando melodicamente Ela pronunciava palavras de uma língua tão intrínseca. Hoje, passeando pelas ruas o que mais me chama a atenção são aqueles que servem à delivery nos balcões de prontidão da vida. A pressa me conduz pela mão e a fome se contenta com batatas-palito douradas. Engulo um xarope e sigo adiante. A morte não me espera e assovio uma canção qualquer sem pretensão alguma; Only yesterday.



Flor de Mandacaru


Concordou com a luz. Teve que abrir os olhos, mesmo tendo providenciado blackout e cortinas para o quarto. Assim fazia diariamente, sem saber o porque exatamente. Cumpria uma rotina irritante e desgastante de lavar o rosto e conduzir mal e porcamente os rituais habituais.

Naquela manhã, parecia tudo mais insuportável do que de costume. Levantou a cabeça diante do espelho do lavabo e não se reconheceu. As pernas pareciam fracas. O corpo desmoronou no trono do banheiro e ali ficou. Sentada, tentava não pensar mais na imagem que agora se deu conta de ser ela, não eu.

Ela, que num determinado momento da vida, olhava e se via. Eu, que já não me importava mais com espelhos. Restaram as duas. Os restos. Imaginou como seria se naquele ano que decidiu "ser feliz", não tivesse tomado nenhuma decisão a não ser omitir-se de novo. Não se convenceu. Nada a consolava. Queria apenas ver novamente seu rosto. Eu, acreditar na cegueira que me dei de presente. Tentou esboçar uma reação levantando-se do vaso sanitário. Trançando as pernas, caminhou até o quarto. Repetia um mantra inútil: "Tire a roupa. Vista o uniforme. Cumpra sua obrigação." Não fazia mais sentido. O corpo estava inerte. Não relutou e mais uma vez se deixou prostrar numa cama que era sua, com um cheiro seu e abrigando um calor quase humano.

Pensou nas filhas. Estavam na escola, tentando ser pessoas melhores. Tudo parecia sem sentido naquele dia. As filhas, a escola, as tentativas, tudo mais que lhe vinha à mente. Num ato de desespero, afundou a cabeça no travesseiro. Rendeu-se. Não relutou contra os pensamentos que vieram inundando a cama, o quarto, a casa, a cidade, os olhos por fim. Estática, ali ficou. Como era difícil não lutar contra todas aquelas lembranças ruins.

Não conseguira guardar nenhuma lembrança boa. Tudo que tinha ficado era de um gosto duvidoso e quase sempre dolorido. Sabia que esta dor, era o que a fazia esboçar qualquer atitude humana e efetiva. Se questionou quanto aos meios, mas aceitou os fins.

Possuía uma dificuldade explícita em cultivar qualquer coisa positiva tais como: coleções, plantas, cachorros, afetos e pessoas. Era tão displicente e nesse momento olhava para as mãos. Percebia que eram pequenas e tímidas para um afago, mas não para um soco na boca do estômago de alguém. Suas mãos poderiam perfeitamente estrangular um pescoço de padrão normal. Ela não conseguia pensar em outro gesto a não ser o de destruir qualquer tentativa de ternura no seu coração. Estrangulara o seu há anos, numa atitude de automisericórdia. Não lhe servia para nada.

Tinha que sobreviver. Tinha que levantar-se todas as manhãs. Vestir o uniforme. Cumprir as obrigações. Não tinha que ter um coração para executar nada disso. Pensou em algo parecido com entranhas e vísceras. Raiva e gana. Enxugou os olhos inundados. Esqueceu as bobagens que insistiam em brotar no terreno de um peito já árido e ressequido. Eram as flores de mandacaru.

Abriu as cortinas e dispensou o blackout. Sussurrou: - A luz só irá embora mais tarde ... e eu já não estarei mais aqui.

Eu, permaneci na escuridão.

O ritual se cumpriu e ela sobreviveu.