segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Flor de Mandacaru


Concordou com a luz. Teve que abrir os olhos, mesmo tendo providenciado blackout e cortinas para o quarto. Assim fazia diariamente, sem saber o porque exatamente. Cumpria uma rotina irritante e desgastante de lavar o rosto e conduzir mal e porcamente os rituais habituais.

Naquela manhã, parecia tudo mais insuportável do que de costume. Levantou a cabeça diante do espelho do lavabo e não se reconheceu. As pernas pareciam fracas. O corpo desmoronou no trono do banheiro e ali ficou. Sentada, tentava não pensar mais na imagem que agora se deu conta de ser ela, não eu.

Ela, que num determinado momento da vida, olhava e se via. Eu, que já não me importava mais com espelhos. Restaram as duas. Os restos. Imaginou como seria se naquele ano que decidiu "ser feliz", não tivesse tomado nenhuma decisão a não ser omitir-se de novo. Não se convenceu. Nada a consolava. Queria apenas ver novamente seu rosto. Eu, acreditar na cegueira que me dei de presente. Tentou esboçar uma reação levantando-se do vaso sanitário. Trançando as pernas, caminhou até o quarto. Repetia um mantra inútil: "Tire a roupa. Vista o uniforme. Cumpra sua obrigação." Não fazia mais sentido. O corpo estava inerte. Não relutou e mais uma vez se deixou prostrar numa cama que era sua, com um cheiro seu e abrigando um calor quase humano.

Pensou nas filhas. Estavam na escola, tentando ser pessoas melhores. Tudo parecia sem sentido naquele dia. As filhas, a escola, as tentativas, tudo mais que lhe vinha à mente. Num ato de desespero, afundou a cabeça no travesseiro. Rendeu-se. Não relutou contra os pensamentos que vieram inundando a cama, o quarto, a casa, a cidade, os olhos por fim. Estática, ali ficou. Como era difícil não lutar contra todas aquelas lembranças ruins.

Não conseguira guardar nenhuma lembrança boa. Tudo que tinha ficado era de um gosto duvidoso e quase sempre dolorido. Sabia que esta dor, era o que a fazia esboçar qualquer atitude humana e efetiva. Se questionou quanto aos meios, mas aceitou os fins.

Possuía uma dificuldade explícita em cultivar qualquer coisa positiva tais como: coleções, plantas, cachorros, afetos e pessoas. Era tão displicente e nesse momento olhava para as mãos. Percebia que eram pequenas e tímidas para um afago, mas não para um soco na boca do estômago de alguém. Suas mãos poderiam perfeitamente estrangular um pescoço de padrão normal. Ela não conseguia pensar em outro gesto a não ser o de destruir qualquer tentativa de ternura no seu coração. Estrangulara o seu há anos, numa atitude de automisericórdia. Não lhe servia para nada.

Tinha que sobreviver. Tinha que levantar-se todas as manhãs. Vestir o uniforme. Cumprir as obrigações. Não tinha que ter um coração para executar nada disso. Pensou em algo parecido com entranhas e vísceras. Raiva e gana. Enxugou os olhos inundados. Esqueceu as bobagens que insistiam em brotar no terreno de um peito já árido e ressequido. Eram as flores de mandacaru.

Abriu as cortinas e dispensou o blackout. Sussurrou: - A luz só irá embora mais tarde ... e eu já não estarei mais aqui.

Eu, permaneci na escuridão.

O ritual se cumpriu e ela sobreviveu.

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Um albatroz disse